terça-feira, 15 de julho de 2008

OFICINA DE ESCRITORES
(Cooperativa de autores de fantástico)





CONTO DO MÊS
(coordenador: Wolmyr Aimberê)
JUNHO


O SEGREDO DAS ROSAS
Heloisa Saraiva







Acabava de pedir mais um chope quando recebi o telefonema. Cancelei o pedido, paguei a conta, segui para a delegacia. O caso era o seguinte: uma mulher de 27 anos, grávida de três meses acabava de ser assassinada. Voltava com o marido de uma festa quando o carro foi parado por uma caminhonete atravessada na estrada. Os dois saltaram. Um desconhecido mascarado fuzilou a mulher e arrancou. Não levou o carro, não levou nada. A história estava me perturbando um pouco. A morta tinha vinte e sete anos – a mesma idade de Angélica. Mas à medida que o delegado falava, a semelhança desaparecia. Rose era uma ex-garota de programa casada há pouco mais de um ano com o filho de um ricaço. A polícia já tinha um suspeito: um ex-amante da falecida chamado Jorjão que já tinha inclusive ameaçado o casal. Álvaro, o marido da vítima, tinha reconhecido o cafetão, mas sem muita certeza – o que complicava as coisas. Não sabia a placa nem outros detalhes do carro. O delegado já tinha ouvido os principais envolvidos, mas precisava de mais. Uma investigação mais informal, mais aberta - a minha especialidade. Como dizia Angélica, minha “intuição masculina” abria os caminhos mais intrincados.

VÂNIA, AMIGA DE ROSE- Sugeriu que nos encontrássemos num bar na Tijuca. Não fosse pelo batom vermelho gritante e a pele marcada seria bem o meu tipo: morena, cabelo ondulado, olhos grandes e redondos. Pediu o mesmo que eu (que não bebo em serviço) - uma coca-cola gelada. Fiz questão de não olhar suas pernas cruzadas quase encostando nas minhas.
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Jorjão? Não sei, pode ser. Ah, sim, as ameaças, mas isso foi no ano passado, mas bom, nunca se sabe. Escute, sei que o Jorjão não é flor que se cheire, já tem ficha na polícia e tudo, mas não creio que seja homem de matar Rose e deixar Álvaro assim, fresquinho. Nem uma balinha de raspão? Só se tivesse alguém por trás, uma grana boa, o senhor entende... Estavam todos na tal festa, o casamento do primo. Álvaro e Rose sairam primeiro, mas enfim, não quero falar nada porque não vi nada e não sei de nada. Se a família aprovou o casamento? O que o senhor acha? O pai queria ver a nora morta, sem exagero. A mãe era meio falsa, às vezes parecia gente boa, às vezes era o cão. Quando soube do neném, pediu que Rose tirasse, o senhor já viu isso? Disse que ainda era muito cedo, que criança dava trabalho e tudo o mais. Rose ficou arrasada, chegou a chorar quando me contou.
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Saindo do bar, esbarrei num vendedor de rosas. O homem me olhou feio. Para não me encrencar, pedi desculpas. Vânia sorriu, disse que eu era simpático e bem-educado - coisa rara no meu ofício. E poderia procurá-la quando quisesse, seria um prazer.


A MÃE DE ÁLVARO. Casa em São Conrado. Uma mulher um pouco envelhecida, mas bem arrumada, como se estivesse pronta para sair. Perguntou se eu queria um café, refrigerante ou um vinhozinho. Fiz um pequeno esforço, aceitei o refrigerante


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Se eu gostava dela? Difícil dizer. Foi tudo tão de repente, a gente nem sabia que ele estava saindo com a moça, de repente vem aquela história de casamento, festa, papel passado, lua de mel, enfim. Álvaro sempre foi um bom menino, um pouco destrambelhado, emotivo talvez, mas acabava sempre escolhendo o caminho certo - pelo menos até aquele momento. Lembro bem, ele aí, sentado nessa cadeira, dizendo que tinha uma coisa para me contar: a bomba. E de uma hora para outra lá estava eu aguentando o falatório dos amigos, os olhares, o senhor sabe, essas coisas existem, o pior é que eu nem sabia se meu filho estava entrando de bobo na história ou o quê. Mas com o tempo até que fui simpatizando com a moça. Rose me tratava bem e parecia, sinceramente, gostar dele. Mas nunca tive ilusões, os dois vinham de meios diferentes, era difícil, com o tempo, a coisa dar certo, o senhor não acha? Falei sobre a gravidez, reconheço, alertei que nem tudo são flores. E qualquer coisa ainda havia tempo, mais vale cortar o mal pela raiz do que amargar depois. Filho é coisa séria, eu que o diga. Falei com Álvaro também. Ele? Saiu batendo a porta. Paciência. Cumpri minha obrigação de mãe.


Sinal vermelho. Um homem atravessou a rua carregando um buquê de flores, perguntou se podia passar. Rosas, outra vez (coincidência?). Respondi que sim, será que ele achou que eu ia arrancar com o sinal fechado? De cara, minha família tinha gostado de Angélica. Advogada e investigadora, sorriso fácil, um agrado sempre na ponta da língua. Desafiou ( e venceu) minha intuição, me fez de gato e sapato, mas por que não parava de pensar, merda? Angélica, Angélica, tão bonita quanto louca - pena que só descobri depois e a duras penas.

ÁLVARO. Apartamento no Alto Leblon. Estava de pijama, olheiras fundas e copo na mão. Em cima da mesa, a garrafa de Chivas pela metade. Desviei o rosto para não cair em tentação. À medida que falava, Álvaro aumentava o tom de voz.


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Minha mãe tinha comentado sobre a gravidez, sim, há pouco menos de um mês. Fiquei puto, claro. Mas sei que a coisa não partiu dela. Minha mãe sempre foi pau mandado, uma dondoca sem vontade própria que vive para opinião alheia. Meu pai sim, é o problema. Um homem rígido, autoritário, tudo tem que ser como ele quer. Sempre me quis ali, na coleira, nunca suportou que eu não seguisse seus passos, inclusive nas menores coisas, como a safra do vinho ou o prato no restaurante. Sei que errei, aceitei demais, engoli demais, sempre com medo, sempre querendo evitar o confronto, até que resolvi dar um basta. Chega! Não, não foi de uma hora para outra, foi todo um processo, sem falar que já estava saindo com Rose há alguns meses – eles é que não sabiam. Se ele pode estar por trás dessa barbaridade? Sinceramente, não sei, nem me sinto em condições de avaliar. Tudo o que posso dizer é que meu casamento foi um Deus nos acuda. Fui chamado de louco, débil mental - até de broxa. Sério, meu pai disse na minha cara que eu devia ser muito ruim de pica para só conseguir trepar com p .... Não, nunca aceitou Rose, dizia que eu ainda ia cair na real e.... Mas de que adianta falar nisso agora?


O PAI DE ÁLVARO. Um escritório no centro da cidade. Cheguei na hora combinada, mas a secretária me pediu que esperasse um pouco. Quando enfim a porta se abriu, ele apontou uma cadeira. Não apertou a mão que estendi.


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O que você quer saber? Se eu matei a vaca? Nem precisava, rapaz, não está vendo? Pergunta idiota: é claro que fui contra o casamento, então ia assistir meu filho enterrar a própria vida assoviando e cantando? Fiz o que pude, cheguei a oferecer dinheiro para a piranha cair fora, mas ela não aceitou. Não era burra, ia receber muito mais se casando com Álvaro e ainda fez o favor de contar para ele para ver o circo pegar fogo. Não, não conheço o tal cafetão, prá falar a verdade nem sabia dessa história das ameaças, muito menos de gravidez. Álvaro não me contou, aliás, já faz tempo que mal nos falamos. É verdade que nunca foi cem por cento da cabeça, mas desde que casou com a mixeteira só fez piorar. Rose era tão ordinária que chegou a ter um caso com um dos melhores amigos dele – pior impossível. Como é que eu sei? Vi numa festa lá em casa, o imbecil do Fred atrás dela feito cachorro vadio, notei o jeito que se olhavam, sou homem vivido, rapaz, que rolou alguma coisa, rolou...


No caminho de volta para o estacionamento, parei para tomar uma cervejinha. O sol iluminava soberano as pedras do calçamento. Camelôs gritavam oferecendo cds e relógios. Um menino passou carregando várias caixas transparentes, cada uma com uma rosa, ele ia equilibrando com jeito, vai cair, vai cair. Não caiu. As malditas rosas, novamente, a terceira vez em poucos dias. Senti um frio na espinha. E logo eu que nunca dei rosas para ninguém. Não deixava de ser uma ironia, alguém lá cima querendo me gozar, talvez. Mais que um aviso, era uma premonição, eu sabia.Velada, difusa, inútil e perturbadora como todas as outras. Pensei no nome da morta e deduzi que de uma forma ou de outra desvendaria o crime. Mas onde as rosas entravam, era esperar para ver.


FRED, AMIGO DE ÁLVARO. Marcou comigo num bar no Baixo Gávea. Óculos escuros, cabelo propositalmente desalinhado. Mal se sentou, deixou cair o guardanapo. Pediu uma caipirinha reforçada.


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Conheço Álvaro desde pequeno, sim, fomos colegas de escola, estudamos na mesma faculdade. O pai dele? Não sei, fica chato falar, afinal sempre me tratou bem, me ajudou quando precisei. Tem aquele jeito meio atropelador, fala grosso e tal, mas no fundo não é má pessoa. Também entendo que Álvaro não teve vida fácil. Questão de temperamento, eu acho. Outra caipirinha, por favor. Álvaro se sentia meio assim, esmagado, o casamento com Rose foi uma espécie de grito de independência. Diga-se de passagem: eu fiquei inteiramente do lado dele – mesmo sabendo que o pai ia ficar pau da vida comigo. Caso com Rose? O senhor está me gozando?


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Fred pede licença, levanta-se dizendo que vai ao banheiro. Minutos depois, volta sorridente junto com o garçom e a outra caipirinha. Sigo na coca-cola, gelo e limão.
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Onde eu estava mesmo?Ah sim, eu me dava bem com ela, conversávamos às vezes. E com Álvaro também, tanto que eu era o único que sabia que os dois não estavam bem, quer dizer, ele não estava bem. Dizia que não sabia o que estava acontecendo, que já não era tão feliz0 como antes... fim da paixão, talvez. Cheguei a falar sobre isso com Rose, numa festa. Lembro que ela estava triste, suspeitava até que ele tivesse outra. Era uma noite de lua, eu tinha bebido um pouco, é possível que tenha pintado um clima uns beijinhos, mas não passou disso. Há quanto tempo? Faz uns três ou quatro meses. Se ele pensava em separação? Não creio. Seria entregar os pontos, se dar por vencido - ainda mais com a gravidez. Se bem que ele não parecia muito animado, chegou a me dizer que não se sentia preparado para ser pai, que não era o momento certo, mas isso é natural...


O Trânsito no final de tarde estava engarrafado como sempre. Inesperadamente, uma mensagem-bomba da delegacia: era muito provável que o assassino fosse uma mulher. Duas testemunhas finalmente tinham se decidido a depor. O casal, que namorava por ali, disse ter visto uma moça de altura mediana e cabelo cacheado saltar da caminhonete e ajeitar o espelho lateral. Tinham até estranhado, uma mulher, aparentemente jovem, sozinha numa estrada deserta àquela hora da madrugada. Respirei fundo, o coração bateu forte. Impossível que Álvaro tivesse confundido um homem do tamanho de Jorjão com uma mulher. Minha intuição berrava no meu ouvido: o bar na Tijuca, o cabelo ondulado – talvez nem precisasse falar com Jorjão. A chuva fina batia no vidro dianteiro do carro, crianças de uniforme se amontoavam nos pontos de ônibus. Hora de ir para casa, pensei. E peguei a Lagoa na direção de Copacabana. Já estava quase chegando no Corte Cantagalo quando vi, dois carros à frente do meu - Álvaro, num Audi preto. O sinal abriu, segui atrás dele. As peças se encaixavam, estava montado o quebra-cabeças. Rose não estava errada, o marido tinha outra – a provável assassina, ajudando o playboy a liquidar o casamento sem precisar dar o braço a torcer nem pagar pensão milionária para um filho que talvez nem fosse dele. Álvaro seguiu pela orla da Lagoa, entrou no túnel. Claro, claro, eu ria sozinho: difícil imaginar melhor presente da sorte. Mas, para minha surpresa, ao invés de seguir direto, ele pegou a saída para Laranjeiras. Ué, então não ia para a Tijuca? Dez minutos, cinco, talvez menos, minha cabeça rodava. Só me dei conta quando vi.... – por Deus, era Angélica, minha Angélica entrando no Audi. Suéter preto, altura mediana, o cabelo ondulado balançando com o vento. Não sei se houve beijo, se não houve. Lembro apenas que tinha parado de chover e das rosas vermelhas sobre o painel. Abri o porta-luvas , peguei a arma.


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4 Comentários:

Blogger tania melo disse...

Um trabalho e tanto. Parabéns à Heloísa, pela autoria(foi meu preferido e votado)e à Mhel, pela criação deste espaço para maior divulgação dos trabalhos dos oficineiros.
beijos,
Tania

15 de julho de 2008 às 18:49  
Blogger Unknown disse...

O conto é bem escrito, tem bom artesanato, mas desde o início fica anunciada a intenção da escritora em dar um desfecho "imprevisto"/previsível, de modo que ao lermos por todo o tempo sabemos que a escritora está "escolhendo" como nos "surpreender". Isso é palpável anunciando-se desde o iniciozinho. Resulta que a surpresa de tão anunciada gora, fica choca.

28 de dezembro de 2008 às 18:17  
Blogger CB disse...

Oi. Lembra da resposta de um enigma que vc postou uma vez no meu blog? Então, vc ganhou

Por isso, vc pode escolher duas coisas para eu postar no meu blog, se vc qizer que seja um texto seu, com créditos é claro, pode!

O outro premio é um convite para o novo orkut, se vc tiver orkut, e ainda não tiver o novo me passa seu orkut, se não tiver, ou já tiver o novo, ou não quizer, tudo bem

A propósito, muito bom o conto!

6 de janeiro de 2010 às 15:15  
Blogger Brenda Guerra disse...

Parabéns à Heloísa!! Estilo Rubem Fonseca de escrever. Na minha visão de leitora, não é a surpresa o mais importante desse texto e sim a qualidade estilística que se mantém preservada do inínio ao fim.
Não sou especialista no assunto mas gostei muito de ler e acho que isso é o que importa, né?

Abraço!
Bruna

11 de janeiro de 2011 às 11:32  

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